quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Por mais que dê voltas, não sei que título pôr a isto...

Hoje, uma espécie de espelho falou comigo. Não para me segredar qual o alvo da minha inveja. Não porque o tenha questionado sobre isso...ou não estivesse eu a escrever do centro do ego e não do egocentrismo. Este "espelho", assim ouso chamar-lhe, não reflecte o que desejo ouvir, mas apenas um pouco do que sou, Crisma da minha identidade (ou parte dela).
Se me custa vestir a capa do antropólogo é porque não me sinto autorizado a fazê-lo, primeiro porque me faltam uns míseros três meses para ter o canudo e, segundo, mais importante, porque olhando para a academia lá não me encontro senão sentado a ouvir, a reter. Por isso bendita a hora em que a sociedade primitiva me deu uma achega. Vamos, não foi nada que eu não soubesse, mas desta feita dito por outrem, simultaneamente o outro, que não o ego, e o par, antropólogo. É sempre bom reconhecermo-nos nas palavras dos outros quando nos dizem respeito, sentimo-nos compreendidos e isso refaz-nos, embala-nos para um eterno retorno.
Confirmei então o que já não me negava quando confidenciando de mim para mim. Esta "capa" do antropólogo deixou de se distinguir de qualquer outra dentre as que se foram acumulando e imbricando na minha pele. Hoje sou um produto da academia, para o bem e para o mal, um produto. Mas ao contrário de Édipo não me sinto capaz, ainda, de fecundar na própria semente que me germinou. Ao contrário dele, se o vier a fazer, espero que seja em conformidade com os meus pais, não contra eles, e acima de tudo consciente de que o estou a fazer. Até lá, limito-me a aplicar conceitos e práticas, modos de pensar e de agir, em tudo quanto me sinto apto a fazê-lo. Um desses casos é o blogue Bicicleta na Cidade, para o qual a sociedade primitiva teve algo a dizer. Sem mais me deter, aqui fica a razão deste post...

As hiperligações IV - Utilizar a Bicicleta na Cidade


…o nosso heroi!

Porquê um blog sobre a utilização da bicicleta na cidade nas nossas hiperligações? Porque, por um lado, nos obriga a pensar o processo civilizacional e porque, por outro, levanta a questão de uma antropologia com causas.

Vamos por partes. O processo civilizacional é ambíguo.

Por um lado pode ser entendido como processo de emancipação - emancipação face ao poder superior da Natureza (através do controlo de pestes na agricultura, de toda a biologia, da genética…), face ao sofrimento físico e à morte (de toda a medicina…), face à inadequação das regras sociais (do fim da escravatura…). Cada exemplo dado não se integra em absoluto na tripartição e interpenetra-se nas outras categorias (é assim o real - foge a toda a tentativa de classificação), p.ex. há factores éticos (sócio-culturais) que obstam ao progresso ad eternum da genética ou, a medicina também é uma tentativa de controlar a Natureza e por aí fora… De qualquer forma, o processo civilizacional, idealmente, é a intenção da humanidade de se conduzir a si própria no sentido da racionalização de todas as relações tensionais e na aniquilação do sofrimento produzido por essas tensões (vemos já que também a sociedade primitiva não está alheada desse mesmo processo). Mas o processo é ambíguo porquê? Porque, por um lado, esse esforço de racionalização não consegue prever todos os problemas de uma assentada (é o problema do lençol demasiado curto), por outro, e de maneira angustiante, cria problemas que não foram previstos (é o problema da Natureza inconquistável - o aquecimento global, as vacas loucas, e por aí adiante…). O processo é ambíguo também porque, na realidade, essa racionalização nunca é, nem nunca será, absoluta, porque simplesmente não somos nem nunca seremos seres absolutamente racionais.

Dito isto voltamos então à causa da bicicleta que nos servirá de exemplo para explicitar este último ponto - a razão irracional da falência da absoluta racionalidade.

O carro e a cidade. São, sem dúvida, vistos isoladamente, dois grandes avanços civilizacionais. Sabemos hoje (racionalmente) que por motivos de densidade a junção destes dois avanços é problemático. Muito tem vindo a ser dito sobre isto e não me vou alongar na problemática da mobilidade na cidade. Mas posso falar das razões que obstam à resolução do problema. Tanto quanto a minha visão alcança (porventura distorcida por motivos ideológicos) os obstáculo parecem-me ideologico-simbólicos e dificilmente racionais ou lógicos.

A cidade é sinónimo de individuação, anonimato, heterogenia, multiplicidade de escolhas, proliferação de estímulos, oportunidades, mas também espaço de solidão, de indiferença, de pronunciadas assimetrias sociais e de grande mediatização simbólica. Na cidade (enquanto centro) aprimoram-se os marcadores simbólicos da normalidade e a sua estética. O carro é um desses marcadores (os consumos em geral) e a sua estética é a do indivíduo normal (mais ou menos “normal” conforme o modelo e a “classe” do veículo). E é muito angustiante para alguém saber de si mesmo perante os outros que não é “normal”. Sem me alargar no “como” opera a normalidade nas escolhas “racionais” dos indivíduos (veja-se uma certa e hegemónica, teoria económica), digo apenas que a norma (e a sua estética) é o principal obstáculo à resolução do problema cidade/carro. O carro não é só um veículo, ele é também uma extensão do self (nada de novo: qualquer publicidade automóvel nos mostra isso e quando é dirigida aos homens, na imagética, o carro é quase sempre instrumento da predação sexual). Nada a que ninguém seja alheio, nem os utilizadores de bicicletas o são. O problema é que a densidade de carros cheira mal, entope as ruas, polui e retira mobilidade.

Quanto às razões para a alternativa “bicicleta”, enquanto utilizador, nem penso muito nelas. Para mim são óbvias. E são óbvias para qualquer utilizador de bicicleta. Posso tentar enumerar-las, embora saiba que nunca convencerei ninguém a deixar o carro em casa e a passar a ir para o emprego de bicicleta, apesar de saber, por experiência, que as vantagens são contundentes, a saber: a vantagem económica; a vantagem para a saúde e; a vantagem ambiental. Tudo razões muito “racionais”. O problema é que nós não somos racionais (ciclistas inclusos). O problema tem de ser atacado “onde doi mais” - na estética e na “razão” ideológica. Nesse sentido a ideia de “bicicleta” arrasta consigo as ideias: liberdade; mobilidade; independência; vigor físico; agilidade e transpiração livre de toxinas (não cheira mal e as mulheres adoram). Tudo valores de uma sociedade primitiva.

Chegados então que estamos ao nosso objecto - o blog Utilizar a Bicicleta na Cidade. Trata-se de um blog de utilizador para utilizadores. Não tenta convencer directamente ninguém. E é um grande passo civilizacional. Se já está convencido, está lá o que é preciso saber. Se não, veja a categoria Bicicleta dell’Arte. O blog fala por si, o seu autor nunca deixou de ser primitivo.

Referências: Sigmund FREUD: O Mal-Estar na Civilização; Edgar MORIN: O Paradigma Perdido.

Sobre a polémica e só para começar, ver também: Odemiragem (e obrigado pela inspiração)

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