terça-feira, 11 de setembro de 2007

...e viveram felizes para sempre.

Esta será a primeira frase do livro que vou escrever, um dia se me apetecer. Ela transporta tudo o que sempre me interessou descobrir nos contos: o que fica para lá do momento em que, depois de raptada a bela pelo monstro, da entrada do bonitão em cena, do confronto do bem e do mal representado nas figuras do bonitão e do monstro respectivamente, da vitória do bem (mesmo que sanguinária) sobre o mal (ainda que justo) e do momento em que a bela e o bonitão se reencontram, se abraçam, se beijam e rodeados por uma pitoresca paisagem contemplam o pôr do sol, ou a multidão em êxtase?... No fundo, será que viveram mesmo felizes para sempre?

Uma história começada com "...e viveram felizes para sempre" não é sinónimo de história para crianças, da mesma forma que as acabadas assim tão-pouco o são. Todos vibramos e ansiamos pelo final previsível do "...e viveram felizes para sempre". Estas histórias não existem para preservar a inocência das crianças, antes para alimentar um sonho adulto.

Duvido que nunca ninguém se tenha lembrado de começar uma história por "...e viveram felizes para sempre", certo é que eu não conheço nenhuma. Talvez porque vendam menos e eu gosto mais das capas coloridas dos best-sellers e das fitas cintilantes "39ª edição", "mais de 10.000.000 exemplares vendidos", "termina com '...e viveram felizes para sempre'"...

Ninguém quer saber o que está para lá do "...e viveram felizes para sempre" a não ser que esteja a viver uma relação complicada e procure ajuda. Ajuda para voltar ao "...e viveram felizes para sempre", ponto final perfeito de uma relação.

4 comentários:

Sónia Balacó disse...

Ninguém quer saber o que está para lá do Happy End, é verdade, mas por outras razões. Porque é para lá desse happy end que vive aquilo que nós trazemos para a ficção, que só nos soa a verdade porque há nela espaço para nos colocarmos e às nossas coisas. Eu sei que há mais coisas do que o que elio e é o que eu imagino que me agrada, talvez até mais do que aquilo que me é narrado. E isto vai da literatura à fotografia, ao cinema e a tudo o que é arte. A verdade e a beleza são o espaço que as obras têm para que nós nos metamos nelas. Digo eu.

Ricardo Sobral disse...

Dizes bem.

Mas enquanto a beleza é sempre prazenteira, a verdade é por vezes inconveniente. Quer antes quer depois do "...e viveram felizes para sempre".

Sónia Balacó disse...

Para mim verdade e beleza são conceitos indissociáveis. O espasmo do belo (falo da arte, mas não só) é o espasmo da verdade.

Ricardo Sobral disse...

Podem ser indissociáveis. Também o podem não ser.
Estamos a falar linguagens diferentes - arte e ciência - e isso leva à incompreensão. Pelo menos à minha incompreensão.
Porque me pareceu em certa medida naïve e ao mesmo tempo muito construído, decidi escrever no Google "verdade e beleza conceitos indissociáveis" a ver o que é que dava. Um mundo outro, diferente das linguagens que domino. Literatura, filosofia, arte, estética.
Entre outras coisas li isto: "Para Platão, o belo é o bem, a verdade, a perfeição" ; "Já Aristóteles, diferentemente de Platão, acredita que o belo seja inerente ao homem, afinal, a arte é uma criação particularmente humana" [http://www.espacoacademico.com.br/046/46cvale.htm].
É certo que me fiquei pela Grécia Antiga e que haverá um longo caminho epistemológico a percorrer até aos dias de hoje.

Para mim, falando na minha linguagem conceptual, o espasmo da verdade pode não ser o espasmo do belo, antes o seu inverso. E é da vontade/necessidade de esconder a verdade que se criam religiões, códigos sociais de conduta, recalcamento, transferência e compensação - as ferramentas ao dispor dos humanos. Claro que nesse processo se criam "verdades", também chamadas de dogmas. "Do you want to know what the Matrix is?"

Estou a correr o risco de me dizeres que a linguagem em que falas é ainda outra, quiçá muito mais genuína e nada académica. Seja como for é de um campo semântico diferente do meu. No limite, discutiremos sobre o nada.

Quando escrevi este texto, em tom mais irónico que depreciativo, em paz com o mundo e o modo como gira, não procurava mais do que questionar o óbvio, texto de resposta fácil. Agarrado à estética de uma frase, usei da minha linguagem - que às vezes não distingo se é genuína ou retórica científica, mas claramente imediata - sem mais pretensões que o simples passar um bom bocado.

Já quanto às suas consequências, agradeço-te teres-me posto à procura de coisas novas no Google ao introduzires uma questão, aliás, um "statement" posto em questão, que vou continuar a pesquisar.